quinta-feira, 16 de julho de 2020

Com poucos testes e leitos de UTI no interior, Minas paga o preço por subestimar pandemia


Hospitalizações por Síndrome Respiratória Aguda Grave aumentam quase 1.000% no Estado, onde mais da metade dos casos de coronavírus foram confirmados nas últimas duas semanas.

A viagem ao Caribe ocorreu sem imprevistos. Embora o Brasil começasse a emitir tímidos alertas sobre a pandemia de coronavírus, ainda no início de março, a agência de turismo garantiu à família de Gilberto Loiola que não haveria problemas em manter o roteiro. Entretanto, ao regressar a Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais, ele se sentiu indisposto. Por três vezes, procurou atendimento em unidades públicas de saúde, mas, sem apresentar febre constante nem maiores sintomas, foi mandado de volta para casa. Como continuava prostrado, resolveu ir a uma clínica particular. Um exame de raio X constatou que o pulmão já tinha sido praticamente tomado.

Gilberto morreu em 13 de abril. A certidão de óbito indicava como causa insuficiência respiratória. Somente 26 dias depois, a Secretaria Estadual de Saúde confirmou que a morte do comerciante aposentado foi provocada por covid-19. “Tivemos de correr atrás, por conta própria, de laudos do hospital e da secretaria para alterar a causa do óbito. Só conseguimos a certidão correta no começo de junho”, relata Carina Loiola, filha de Gilberto, que também perdeu o sogro, de 67 anos, após infecção por coronavírus. Ele estava na viagem ao Caribe e, assim como Gilberto, não tinha doenças prévias. Atualmente, Poços de Caldas, com 165.000 habitantes, soma 302 casos confirmados e oito mortes por covid-19. Na mesma região, Pouso Alegre contabiliza mais de 479 infectados e 11 óbitos, seis deles registrados em um intervalo de quatro dias.

O retrato da região sul do Estado simboliza uma guinada de perspectiva sobre a pandemia em Minas Gerais, onde, até maio, as autoridades gabavam-se de ter a “situação sob controle” a partir dos dados oficiais: menos de 7.000 casos e 250 mortes. Porém, a subnotificação e a baixa testagem se revelaram decisivas para o aumento exponencial de registros da doença entre junho e julho, elevando as cifras para 78.643 infectados e 1.688 óbitos, sendo que mais da metade (56%) do total de casos no segundo Estado mais populoso do país foram confirmados nas duas últimas semanas.

Segundo dados da secretaria de Saúde, houve crescimento de 930% no número de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) entre janeiro e junho, comparado ao mesmo período de 2019. O percentual é semelhante a ao apurado em uma pesquisa do grupo de cientistas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), que mostra elevação em 750% das mortes por SRAG no Estado em relação à média dos três anos anteriores. Óbitos por pneumonia e insuficiência respiratória, como atribuída inicialmente no atestado de Gilberto Loiola, também aumentaram, porém em proporção bem menor, na casa de 5%.

“Os números indicam a subnotificação de casos relacionados à covid-19 e são reflexo da baixa testagem no Estado”, explica o professor e epidemiologista Stefan Vilges de Oliveira, da Faculdade de Medicina (Famed/UFU). “Muitos óbitos estariam sendo registrados de forma errônea, sobretudo por indisponibilidade de diagnóstico laboratorial. O Brasil já testa pouco, e Minas testa muito abaixo da média nacional e do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa mensagem de segurança passada pelas autoridades no início da pandemia, sinalizando que a situação no Estado era confortável, pode ter potencializado o avanço da doença.”

Minas fechou o primeiro semestre como o Estado que menos realizou testes para o coronavírus no país: 170 por 100.000 habitantes, índice cinco vezes menor que a média nacional (845). Em São Paulo, o Estado mais populoso, são feitos 1.300 testes para cada 100.000 habitantes. Por falta de material para diagnóstico, 73% das quase 3.000 mortes por SRAG acabaram registradas com “causa indefinida” —quando não é possível identificar o vírus—, mais que o dobro da média nacional (30%, de acordo com o último balanço divulgado pelo Ministério da Saúde). “Em 2020, tivemos um número maior de notificações [de mortes por SRAG], mas esse aumento não refletiu na sobrecarga do sistema público de saúde”, justificou a secretaria de Saúde, no fim de maio, quando havia realizado pouco mais de 20.000 testes para coronavírus.

A baixa testagem é fruto de uma estratégia do Governo mineiro, liderado por Romeu Zema (Novo). O governador chegou a afirmar em pronunciamento que “o que salvam vidas são UTIs, não testes”. Nos três primeiros meses da pandemia, os dados que norteavam as ações das autoridades estaduais se resumiam à ocupação dos leitos por pacientes com covid-19, até então restrita a 4% da capacidade dos hospitais públicos, o que levou o Governo a encampar um plano de reabertura das cidades ainda em abril. Batizado de Minas Consciente, o protocolo elaborado pela secretaria estadual criou diretrizes para orientar prefeitos na flexibilização das medidas de isolamento social. Em dois meses, 165 municípios aderiram ao plano, mas o boom de novas infecções obrigou boa parte deles a recuar no cronograma de reabertura.

Na capital, que era uma das menos impactadas pela pandemia, o prefeito Alexandre Kalil adotou ações independentes do Governo estadual. Um mês depois de autorizar a reabertura do comércio, os casos e mortes por coronavírus dobraram. No fim de junho, a prefeitura de BH assumiu a necessidade de um novo fechamento das atividades não essenciais. “Minas tem utilizado basicamente o número de leitos como indicador sobre a gravidade da pandemia. Se houvesse maior testagem, além de outros indicadores mais confiáveis, o Estado teria como antecipar ações para barrar o crescimento do número de casos. Testar pouco é muito preocupante, porque os dados servem de justificativa para flexibilizar a quarentena”, diz Oliveira.

Atualmente, 25% das UTIs estão ocupadas por pessoas infectadas pelo coronavírus, o que fez soar o alarme para uma mudança de atitude do Governo. Apesar de ter aberto mais de 1.000 novas vagas de UTI na rede pública, em comparação com o número disponível no início do ano, o Estado dá sinais de preocupação diante do risco de colapso dos 3.300 leitos atuais caso a pandemia siga avançando com a mesma velocidade do último mês. Mais da metade dos leitos está localizada nas grandes cidades, que precisam atender os casos registrados em municípios do interior. Em Belo Horizonte, a ocupação dos leitos de UTI chegou a 90%. Cidades como Guaxupé e Lavras, no sul de Minas, anunciaram ter atingido a capacidade máxima de lotação em vagas reservadas para pacientes de covid-19.