Arnaldo Santos
Jornalista, sociólogo e doutor em Ciências Políticas.
A ascensão inesperada da direita, se assim podemos conceituar a linha de pensamento que está no poder, mergulhou o Brasil em uma crise com dimensões intelectuais, morais, político-sociais e econômicas, sem precedentes em sua história recente.
Estamos diante de uma real e tríplice ameaça à democracia, precedida pela desconstituição das liberdades, bem como dos padrões civilizatórios individuais e coletivos, vetores para uma convivência pacífica entre os que são - e pensam – diferentemente, flagrante atentado e desrespeito aos demais poderes da República, agravamento à saúde coletiva pelo descaso em relação à pandemia, causada pela Covid-19, e aguda crise econômica, consequência das duas outras.
Por ignorância histórica, visão reducionista da realidade, baixo nível intelectual e outras negações e conflitos contemporâneos, anacronismos próprios de uma sociedade que ainda ostenta défices nos vários campos do saber, especialmente educacional e político, nos últimos meses, a Nação passou a conviver com a falsa ideia da existência de um mito, idealizado por alguns milhões de cabeças com escassos recursos mentais, acreditando que essa utopia nos conduzirá à Terra da Promissão.
Em o “Mito da Caverna”, na classicíssima obra A República, alegoricamente, alguns homens viveriam presos e acorrentados no interior de uma caverna, de costas para a saída, onde só enxergavam as sombras projetadas. Platão propõe ser necessário educar o homem de forma integral para o bem da pólis e liberta-lo das correntes da ignorância, e afirma que a saída da caverna depende do esforço coletivo.
Trazendo para os dias atuais mencionada alegoria, onde o mito, ao contrário de Platão, que queria libertar o homem, tenta aprisionar a sociedade a uma determinada corrente de opinião, percebe-se, nas sombras tenebrosas das ideias vigentes nesses tempos de trevas, a formação de profundos cânions da ignorância e do obscurantismo, nas vastas montanhas da ideologia e do ódio.
Metaforicamente, é como se o Brasil fosse a caverna referida na obra platonista, onde todos estávamos vivendo presos pelos grilhões da corrupção, impunidade e atraso, impostos pela velha política, e suas práticas malsãs, enquanto um certo mito seria o libertador do povo.
Com esse objetivo, foi imaginada uma “nova política”, que iria superar o problema da relação entre Política e não-politica, Moral e Política, que viria no presente ser conduzida pelo “moderno e eficiente centrão”, tornando a caverna ainda mais escura e profunda, sujeita a desabar sobres nós.
Ainda segundo essa lenda, a sociedade passaria por uma espécie de mutação em suas estruturas e valores morais, curando-se de suas patologias sociais, erigindo-se um novo padrão ético-político, mediante a criação de outra cultura republicana e de um realismo político moderno.
Fora desse imaginário simbólico representado na figura desse mito primitivo, a percepção é de uma realidade líquida, a que se reporta Zygmunt Bauman, nos transportando a um sentimento de frustração, denunciando que aos poucos estamos cavando a própria caverna, ainda mais tenebrosa do que aquela imaginada pelo célebre filósofo e matemático heleno.
Para entendermos hoje a simbologia e o significado dessa mistificante ideia, impõe-se o resgate do mito político, expresso por Norberto Bobbio, (Dicionário de Política-Vol.2), historicamente ligado à crise do racionalismo liberal do século XIX, e a discussão em torno do racionalismo e do irracionalismo, como a observada agora no Brasil.
Como é consabido, desde o início do século XX, o mito político, como trilha de pensamento, sempre esteve vinculado aos movimentos autoritários de direita, bem assim a grupos e partidos fascistas, em curso nalgumas partes do mundo.
Aqui encontramos a explicação e os fundamentos ideológicos das agitações a que já nos acostumamos assistir todos os finais de semana em Brasília, e nas maiores cidades do País. Norberto Bobbio nos adverte, ainda, para o problema na relação entre mito político, mitologia em geral, ideologia e utopia.
Um deles é de que “[...] o Mito político provoca reações coletivas e inconscientes, “irracionais”, [...] com aplicação de métodos e conteúdos arcaizantes, e mostra que, já “[...] no segundo pós-guerra o uso nazista do mito político provocou dura reação contra esse mito como tal”.
O escritor Ernst Cassirer (1874-1945) foi seu maior intérprete, com o livro The myth of the state, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, no qual demonstra uma densa análise sobre esse tema, e expressa uma teoria da evolução histórica da humanidade, no âmbito da qual, para ele, o “[...] mito é forma típica do conhecer primitivo”.
Examinando a projeção das sombras em nossa caverna, sem muito esforço, é possível identificar as variadas semelhanças entre o mito político do século XXI e daqueles que o reverenciam como tal; e o mito político da primeira metade do século XX, descrito por Bobbio.
Essa identificação é possível de ser encontrada, seja pela ideologia, ou pela irracionalidade negacionista, em sua maneira de governar, e de se relacionar com os demais poderes da República, e com a Nação, seja pelo culto hitlerista autoritário e desumano, seja pelas reações coletivas que tem provocado, em razão do primitivismo de suas ideias, ou ainda pelas bravatas facistóides que protagoniza rotineiramente.
As três dimensões da nossa crise, a que referimos logo no início dessa reflexão, nos leva ao físico e escritor Fritjof Capra, em seu livro O Ponto de Mutação, onde ele analisa os diversos problemas que a Humanidade defrontava no final dos anos de 1970, com o início da crise dos combustíveis fósseis, e os conflitos políticos no mundo, provocados pela guerra fria.
Ele se mostra surpreso e atônito com o fato de os especialistas das diversas searas do conhecimento, vinculados aos maiores centros de pesquisas das mais prestigiadas Universidades dos EUA, e da Europa, já não serem capazes de apontar soluções para os problemas no planeta.
Segundo sua análise, mesmo nos EUA, onde historicamente seus presidentes sempre se aconselharam e buscaram nas ideias dos intelectuais, e do pensamento acadêmico, as soluções para o enfrentamento das suas crises - mormente as de cariz político - ele se mostra sob choque com o fato de esses especialistas das sendas várias do saber não se mostrarem capazes e motivados a oferecer soluções para os problemas urgentes do mundo contemporâneo.
Olhando para o que está ocorrendo em nosso País, não obstante as expressões do pensamento acadêmico, em particular, nas áreas da Economia, Ciências e Tecnologia do governo, o resultado até aqui revela um grande fracasso.
Para o Celebrado físico vienense, a sociedade global enfrenta uma crise de ideias, e “[...] o mundo acadêmico continua a subscrever percepções estreitas da realidade, as quais mostram-se inadequadas para enfrentar os principais problemas do nosso tempo”. A razão, segundo ele, está no fato de serem problemas sistêmicos, intimamente interligados, e interdependentes, não podendo mais ser entendidos e abordados no âmbito dos governos, de maneira fragmentada, que é uma característica da metodologia acadêmica.
Quando olhamos para nossa realidade político-econômica, ambiental, tecnológica, social, cultural - e educacional, o problema é ainda mais grave, pois “o armário de ideias está vazio”; e o “estoque de homens”, também, e já faz algum tempo; especialmente no terreno da Política.
A ascensão do mito político denúncia contundentemente esse deserto de ideias e de lideranças políticas. Sem muito esforço, facilmente, comprovamos que o opulento rio de ideações que já tivemos, logo após promulgada a Constituição, em 1988, se dividiu em dezenas de riachos, córregos e meros fios d’água, e, em algumas áreas, a aridez é total!
Para confirmar o que estamos afirmando, faz-se imperioso lembrar que, no período imediatamente após a redemocratização, existia o que chamamos de “estoque de homens públicos”, dos valores e das estirpes do “Senhor diretas já” - Dr. Ulisses Guimarães - Tancredo Neves, Mário Covas, Franco Montoro, Itamar Franco, dentre outros, o que nos dava a segurança de que, no caso de qualquer deles assumir a Presidência da República, os destinos e o futuro do País estavam em segurança.
Como eram todos septuagenários, pela lei natural da vida, o estoque foi se exaurindo, e as mais de três décadas de democracia, com eleições consecutivas a cada dois anos, não foram suficientes para reposição do estoque e abastecimento do armário.