quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Doe de Coração: Uma corrente de solidariedade

A doação de órgãos e tecidos é um ato de partilha que salva vidas e, ao mesmo tempo, cria um movimento contínuo de ajuda ao próximo. Realizada pela Fundação Edson Queiroz, a campanha Doe de Coração estimula este gesto de amor há 20 anos.


Diógenes e sua esposa Marcela celebram a oportunidade de uma nova vida em razão da solidariedade de quem decidiu ser doador (Foto: Ares Soares)

Quando Diógenes Lima de Castro descobriu que precisaria de um transplante de coração por conta de uma cardiopatia grave, foi tomado pelo medo. Ele tinha muita vontade de viver, mas sabia que poderia demorar até que conseguisse fazer a cirurgia e achou que seu tempo neste mundo se encerraria em seis meses.

Mas depois de algum tempo na fila, sofrendo com o cansaço de um coração dilatado, recebeu a boa notícia de que faria o transplante, fruto da solidariedade de uma família que ressignificou a perda dolorosa de um parente com o gesto da doação.

“Tenho amor, respeito e gratidão por essa família que, na hora da dor, tomou essa decisão e salvou a minha vida”, conta Diógenes, seis anos depois de receber o coração. "Sempre que eu falo, represento as seis vidas salvas pelo meu doador", diz, referindo-se aos seis órgãos que foram doados a pacientes que provavelmente vivem em diferentes cidades do país.

Estimular a doação virou uma missão de vida

Desde então, todos os anos Diógenes se empenha em fazer campanha e pregar a importância da doação de órgãos e tecidos. "Virou uma missão de vida, uma forma de agradecimento", explica. Isso porque ele soube que o dono do coração que hoje bate no seu peito expressou a decisão de ser doador graças a campanhas como a Doe de Coração, realizada há 20 anos pela Fundação Edson Queiroz.

Diferente da maioria dos transplantados, Diógenes pôde conhecer a família de seu doador. A legislação brasileira protege o sigilo tanto do doador quanto do receptor, caso assim desejem. Mas um programa de TV investigou para descobrir doador e receptor, que aceitaram o encontro. "Eu quis muito conhecer. Foi uma das melhores cenas da minha vida", recorda Diógenes.


"A minha vida é fruto da campanha de doação de órgãos, ela passa por dentro de tudo isso. A Doe de Coração tem importância fundamental. Temos que mostrar à população que a doação funciona e é séria. A dor da família do doador não é desprezada" – Diógenes Lima de Castro, transplantado

Além de receptor do órgão, ele foi também doador. As válvulas do seu antigo coração puderam ser aproveitadas para salvar outra pessoa, lá em Curitiba. Apesar de o transplante exigir acompanhamento médico constante, a cirurgia mudou a vida de Diógenes. Se antes ele socializava pouco pelo cansaço constante da cardiopatia, descobriu o gosto de viver e faz questão de juntar os amigos sempre que pode.

Testemunhando para educar

Quem recebe um órgão por um ato profundo de amor da família que perdeu seu ente querido sabe bem o imenso significado disso. Jailma Leal, de 43 anos, levava uma vida saudável. Tinha uma rotina normal: deixava a filha de 13 anos no colégio, trabalhava, comia bem. Mas, repentinamente, começou a sentir calafrios, perder a vontade de comer e ver as pernas incharem muito.

"Eu não conseguia dobrar minhas pernas", lembra. Até que um médico a diagnosticou com cirrose. "Seu problema é gravíssimo", ouviu do médico, pouco antes de saber que precisaria de um transplante de fígado.

"Naquele momento, o chão se abriu para mim, e comecei a chorar", conta Jailma. Depois de várias internações, passagem por sala de ressuscitação, infecção grave e muitos meses de espera, ela finalmente faria o transplante. Jailma tem a data do chamado gravada na ponta da língua: 7 de maio de 2019.


"Hoje eu vivo minha vida normal, na medida do possível, porque nós transplantados sempre temos limitação. Mas eu tenho um propósito na minha vida: dar meu depoimento para que as pessoas sejam doadoras e mais vidas sejam salvas, como eu fui" – Jailma Leal, transplantada

Desinformação é um entrave para doações

A falta de informação adequada ainda leva muita gente a temer a doação de órgãos. Sete em cada dez pessoas até querem ser doadoras, mas apenas a metade comunica à família, que é quem realmente tem o poder de decisão em caso de morte cerebral no Brasil. Os dados são da pesquisa Doação de Órgãos do Instituto Datafolha, divulgada no ano passado.

Há quem pense erroneamente que pode haver falhas no diagnóstico de possíveis pacientes doadores. Mas há muitas regras no processo de doação. A morte cerebral precisa ser atestada por médicos e por exames específicos. Só depois o diálogo com a família é iniciado. Isso significa que não é possível que nenhum procedimento seja feito sem garantir que já não haja chance de recuperação para o paciente doador.

Durante a pandemia do coronavírus, a quantidade de doações caiu, mas agora já volta a se recuperar lentamente. Diante deste cenário, ações educativas para que a população conheça a segurança da doação de órgãos e tecidos e seu importante papel de salvar ou melhorar vidas ganha importância redobrada. "Dizer sim pra esse ato de solidariedade é muito importante para a sociedade", defende a coordenadora da campanha Doe de Coração deste ano, Elodie Hyppolito.

A médica que abraçou a área de transplantes por amor ao pai

Médica e professora universitária, Elodie Hyppolito decidiu abraçar o setor de transplantes após a morte do pai na fila por um transplante de fígado. Ela acompanhou o caso do lado da família e compreendeu o tamanho do gesto de amor implícito na doação.


"A Doe de Coração ensina uma noção de cidadania muito importante, que é a generosidade após a morte. A mensagem que eu deixo, como uma familiar que já doou as córneas como meu pai, é que doar faz com que a gente continue vivo em outra pessoa" – Elodie Hyppolito, médica hepatologista e professora

O desejo se efetivou em 2014, quando começou a atuar no Hospital das Clínicas. Há anos, ela é uma entusiasta do movimento Doe de Coração e do seu potencial para cultivar o amor na sociedade. No Instagram (@hepatologia_ceara), costuma publicar conteúdos sobre o assunto.

"Não tenho dúvida de que a campanha Doe de Coração é uma das grandes responsáveis, junto às equipes médicas, pelos números de transplante serem tão bons no Ceará. A gente louva essa iniciativa da Fundação Edson Queiroz", diz a hepatologista.

O Ceará é o terceiro estado que mais realiza transplantes no país. Segundo dados do IntegraSUS, portal de transparência da Saúde do Ceará, neste ano o Estado obteve 133 doações efetivas e 937 transplantes até o mês de julho. Além disso, o Ceará é referência no transplante de fígado no Norte e no Nordeste. Para se ter uma ideia, 60% dos transplantes realizados no Hospital das Clínicas são de pacientes de fora do Estado.

+ Fundação Edson Queiroz é premiada pelo Ministério da Saúde por promoção da doação para transplantes

A gratidão chega ao Tik Tok


O radialista Luiz Matias recebeu um transplante de fígado e uma nova chance de viver (Foto: Ares Soares)

É o caso de Luiz Antônio Matias, de 63 anos. Natural de Uberlândia, em Minas Gerais, ele mora há mais de 35 anos no Maranhão. Era 2020 quando percebeu que sua barriga começou a crescer. Viajou para Teresina, onde foi diagnosticado com hemocromatose, uma doença genética causada por alterações no metabolismo do ferro que o faz acumular-se em diferentes órgãos. Teria de fazer um transplante de fígado urgente. 

Foi então direcionado para Fortaleza, referência na área, em plena pandemia. "Entrei em desespero. Achei que só teria mais uma semana de vida”, conta. Mas seu destino foi mudado graças à decisão da família de sua doadora.

"Essa família salvou a minha vida e de mais sete pessoas. Hoje sou um milagre de Deus", diz Matias, que hoje tem um programa de rádio no seu Estado e um perfil no Tik Tok onde publica vários vídeos para estimular a doação de órgãos. Matias conta que realizar sua própria campanha é uma forma de agradecer a esta generosidade.

Uma campanha de 20 anos

Desde 2003, o movimento Doe de Coração desenvolve ações para informar, conscientizar e mobilizar as pessoas sobre a importância de ser doador de órgãos e tecidos. A 20ª edição da campanha foi lançada no dia 5 de setembro, às 9h30, no Auditório da Biblioteca Central da Unifor.


O artista plástico Mário Sanders redesenhou a marca da Doe de Coração para sua 20ª edição neste ano (Foto: Ares Soares)

Todos os anos, a campanha é esperada com muita curiosidade sobre a nova marca, cujo redesenho em 2020 foi desenvolvido pelo artista plástico, designer gráfico e ilustrador Mario Sanders. “Meu trabalho está muito voltado pro bordado. O ícone do coração é clássico, então o mantive e trabalhei com elementos da natureza, que acho que é a maior representação da vida, do movimento, do afeto e do amor. A doação é em função da vida. Eu me sinto parte dessa campanha”, conta o artista.

“A campanha Doe de Coração foi muito importante para o Ceará porque atingiu, através de seu marketing e mídias, uma conscientização muito forte a importância de doação de órgãos e tecidos”, diz a transplantada e presidente da Associação Cearense dos Pacientes Hepáticos e Transplantados (ACEPHET), Vera Lucia Santos. A Unifor é parceira da entidade, que também realiza campanhas constantes há anos.


Vera Lucia Santos, presidente da Associação Cearense dos Pacientes Hepáticos e Transplantados (Foto: Arquivo pessoal)