Por Alex Araújo, economista e diretor de negócios da Camed Microcrédito e Serviços
No exato momento em que Trump anunciou tarifas de 50% sobre produtos brasileiros — uma medida simbólica e estratégica —, revelou-se um padrão: o uso do comércio como instrumento de guerra contra a crescente autonomia financeira do bloco BRICS.
O discurso político da sanção girou em torno do STF, da polarização interna e do histórico de Bolsonaro. Mas, como destacam especialistas, o alvo real era geopolítico e econômico — uma ofensiva contra qualquer desvio do dólar como pilar central da economia global.
Neste cenário, o Brasil se torna protagonista de um campo de batalha monetário: um teste de resistência, no qual stablecoins emergem como potencial desafio à dominação do dólar. O que está verdadeiramente em jogo é um êxodo dos sistemas fiduciários tradicionais — e aqui mora o grande tabuleiro.
Trump não iniciou essa batalha ontem. As tarifas são o braço tático de uma estratégia deliberada para conter movimentos de plataforma paralela — como o BRICS Pay — e iniciativas de moeda alternativa. O tema não é só Brasil versus EUA, mas Brasil dentro de um bloco que disputa o controle monetário global.
Os BRICS — hoje com mais de 40% da população e cerca de 26% do PIB — discutem uma moeda multilateral, possível cesta digital ou CBDC, alicerçada em reservas nacionais e blockchains. Para Trump isso é declarar guerra ao dólar — e, portanto, há retaliação econômica direta.
Diante do risco de perder o domínio, os Estados Unidos reagem justamente no campo financeiro digital, tentando se antecipar e criar regulamentações que os beneficiem. Recentemente, o Senado americano aprovou o GENIUS Act, com apoio bipartidário, estabelecendo um marco regulatório federal para stablecoins emitidas por bancos e fintechs.
Esse marco exige lastro integral, auditorias periódicas e uma supervisão robusta. Paralelamente, a proposta STABLE Act avança na Câmara, sinalizando tanto a firmeza institucional como a urgência do tema, e definindo a semana de 14 de julho como “Crypto Week”.
A Circle, responsável pelo USDC (uma stablecoin pareada com o dólar americano), solicitou licença para operar como “trust bank” nacional, estabelecendo o First National Digital Currency Bank, N.A., com o objetivo de gerenciar reservas e legitimar operações envolvendo stablecoins.
Paralelamente, a fintech GFT lançou um programa destinado a orientar bancos dos Estados Unidos no desenvolvimento de stablecoins alinhadas à nova estratégia regulatória. A Fiserv, grande empresa de tecnologia financeira, firmou parceria com Circle e Paxos para lançar sua própria stablecoin, a FIUSD, voltada ao mercado regional e comunitário, além de promover integração com plataformas de pagamento já consolidadas, sinalizando uma preparação consistente para adoção das stablecoins em larga escala.
Segundo a revista Barron’s, ligada ao The Wall Street Journal, stablecoins como USDC e USDT já respaldam cerca de US$225 bilhões em ativos, com projeção de até US$4 trilhões até 2035(barrons.com). Isso já altera a dinâmica da demanda por títulos de curto prazo — inclusive impactando rendimentos do Tesouro norte-americano.
O que está em curso? Uma bem-orquestrada reconquista monetária digital: o dólar permanece sendo rei — agora com token —, protegido por estrutura legal, financeira e de estabilidade.
A fronteira: stablecoins como ferramenta global
Stablecoins usam blockchains — por natureza interoperáveis, instantâneas e hoje já utilizadas para pagamentos internacionais, varejo, remessas e comércio transfronteiras — em mercados que buscam menos burocracia e mais eficiência. O sistema é mais barato e confiável do que o atual, cujas transferências se centram no SWIFT.
Imagine o Brasil usando BRICS Pay + CBDC Drex para vender etanol à Índia pagando em real tokenizado. Com isso, fortaleceria laços do bloco e utilizaria redes diretas, evitando taxas de conversão e controles do dólar.
Os BRICS exploram várias frentes: CBDCs, blockchain para comércio interno e um sistema monetário menos dependente de SWIFT/dólar. Mas carecem de padronização, escala e liquidez global — especialmente em comparação com a engenharia monetária dos EUA.
A estratégia americana é clara: deixar que os próprios bancos tokenizem seus sistemas, credibilizando-os com regulação, garantindo liquidez (tesouro), identidade institucional e controle de risco — enquanto o dólar digital se expande.
O risco implícito: stablecoins não reguladas podem causar instabilidade; por isso a regulação GENIUS Act. Mas se os EUA oferecem moeda estável, auditável e regulada, qual será o apelo real das stablecoins BRICS? Uma moeda tokenizada precisa ser convertível, confiável e amplamente aceita — e hoje a infraestrutura para isso é predominantemente americana.
O dilema brasileiro
O Brasil está no centro desse duelo, e precisa decidir o quanto quer ser sujeitoou objeto da nova ordem monetária digital.
O Banco Central do Brasil trabalha no Drex — sua própria CBDC (Central Bank Digital Currency, uma versão digital da moeda de um país emitida e controlada pelo Banco Central)— mas ainda está longe da interconectividade ou do preparo para transações multilaterais entre BRICS. É necessário acelerar sua implementação, compatibilizar com BRICS Pay e explorar parcerias com plataformas reguladas internacionais.
Estratégia não é bravata, é proposta: integrar o Drex à arquitetura BRICS, criar pools líquidos entre real, yuan, rublo, rúpia e rand — e, com isso, mitigar a exposição ao dólar nas cadeias de valor.
O Brasil deve criar seu próprio sandbox regulatório para stablecoins corporativas lastreadas em real, assegurado por auditorias e liquidez, compatível com padrões internacionais — aprendendo com GFT, Circle e Fiserv. Essa agenda é urgente e necessária para reafirmar a nossa autonomia econômica.
O país precisa guiar a narrativa: o tarifaço é sintoma, não causa. O foco real deveria ser “inovação monetária, soberania econômica e multipolaridade financeira”. A diplomacia precisa colocar o triple-play na mesa: CBDC + BRICS Pay + regulação nacional inteligente.
Trump usou tarifas para afirmar que quem desafia o dólar paga — em tarifas, atenção, retaliação. Mas os EUA mesmos abriram caminho para a reconstrução do poder monetário digital com stablecoins lastreadas, reguladas e interoperáveis.
O Brasil está às voltas com Bolsonaro, Lula, STF... enquanto Trump acelera o plano de dólar tokenizado. O risco? Acompanhar como coadjuvante, dependente do FED e sob pressão tarifária — ou construir, em parceria, uma moeda digital própria, interoperável com BRICS, alinhada com sua soberania e capaz de resistir geopolítica e economicamente.
A bola está no campo brasileiro: ou desperdiçamos essa chance monumental na encruzilhada do século XXI — ou desenhamos uma agenda que atualiza, enfim, nossa autonomia monetária, diplomática e tecnológica.