domingo, 17 de maio de 2020

O mau jornalismo, segundo Rui Barbosa

Há cem anos (1920), um gesto filantrópico do jornalista, advogado e diplomata Rui Barbosa (1849-1923) resultou na publicação de uma conferência sua para doação dos direitos autorais a uma instituição de Salvador, o Abrigo das Filhas do Povo. Já adoentado, então com 71 anos, dois anos antes do seu falecimento, pediu ao amigo, o jurista, político e escritor João Mangabeira, que fizesse a leitura pública do seu famoso “A imprensa e o Dever da Verdade”.

Esta discussão tão atual sobre a ação da imprensa no mundo e os valores da democracia é sempre legítima. No Século XIX, o papel da imprensa aproximou-se muito do papel político e com ele entrelaçou-se. Decerto formava opiniões e algumas vezes fiscalizava o Governo e informava a sociedade. Político atuante e duas vezes derrotado nas eleições à Presidência da República, constatou a lisura das eleições nas quais foi derrotado e sempre afirmou que o mais inviolável dever do homem público é o de estabelecer a verdade, em suma, a prática da verdade nos atos e ações do homem público, fosse no tribunal ou na imprensa. A mentira, contida numa fraude eleitoral, o horrorizava.

Apesar da atualidade do tema, o texto de Rui Barbosa foi pouco reeditado ao longo do tempo, se levarmos em conta a sua permanente atualidade. Numa das suas melhores reedições, a quarta edição, prefaciada pelo professor, advogado e conferencista Manuel Alceu Affonso Ferreira, numa edição da Ed. Papagaio (2003), vemos como a imprensa de então podia se constituir num aliado, de modo diverso ao de hoje. Isto porque, no Século XIX, a imprensa atuava como um poder fiscalizador, formando opiniões e supervisionando o governo. Já no prefácio do livro, ele nos diz que as afirmações de Rui Barbosa não podem ser entendidas como isoladas no tempo, já que os vícios permanecem, embora não com a mesma desfaçatez, mas maquiadas.

De fato, não só as formas como isto se dá o demonstram, mas também como são distribuídas as verbas publicitárias, sendo inegável a condução a novas formas de conluio. Affonso Ferreira considera que se providenciou a substituição pelos financiamentos estatais, quase todos com apoio político pelas anistias tributárias que pagam o noticiário laudatório pelos incentivos concentrados da atividade jornalística a grupos monopolistas; enfim, pelas mil e uma artimanhas de que é capaz a engenhosidade dessa eficiente parceria entre alguns maus jornalistas e maus agentes políticos.

Afastada da busca da verdade que deveria ser o seu objetivo principal, a imprensa já não obsta o poder aceitar distorções na apuração do que escreve, promove e divulga ao leitor, sem nenhuma preocupação com os princípios éticos. Entre as estações televisoras as brigas pela audiência e o comprometimento político transformam o noticiário de algumas das principais emissoras naquilo que Rui Barbosa qualificava como degenerescente. Cada vez mais perigosamente atual, parecem proféticas as palavras do grande Rui: “Um país de imprensa degenerada é um país cego e um país miasmado, um país de ideias falsas e sentimentos pervertidos, um país que explorado na sua consciência não poderá lutar com os vícios que lhe exploram as instituições”. Temos o retrato da imprensa em nossos dias.

Luciara Aragão- historiadora e jornalista, analista de ciências políticas e relações internacionais